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Cinema e xamanismo

  • Foto do escritor: Paola Mallmann
    Paola Mallmann
  • 20 de jan. de 2020
  • 5 min de leitura

Aconselho veementemente à geral dois filmes incríveis que assisti recentemente e me apaixonei. Percebi que pouca gente com que conversei no dia a dia já tinha assistido ou ouvido falar, são o “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, direção de João Salaviza e Renée Nader Messora; e “Ex-Pagé”, de Luis Bolognesi, altamente indicado para o bravo povo brasileiro.

Inicialmente, o que mais me atraiu na narrativa centrada foi a experiência indígena com o “tornar-se pajé, xamã”, ou “deixar de ser pajé” - se é que isto é possível. Ambos os filme descortinam um campo da cosmovisão indígena pouco conhecido e visível para os não indígenas, em contraste com as cosmovisões predominantes na realidade do Brasil. Nestas obras, o fio condutor principal é a relação com o xamanismo, e cinema e xamanismo juntos, são muito instigantes, ainda que se confronta com os impasses subjetivos e sociais dos protagonistas que vivem o agora político. São obras que transpõe as bordas entre documentário e ficção, mesmo que se filiem na categoria de cinema documental e por isso, já valem muito dentro do contexto da criatividade e resistência do cinema brasileiro. > Assistam!

No caso de “Chuva...”, o filme assume claramente essa condição de documentário ficcional, onde mesmo que se tratando da documentação de vivências reais, há um tratamento e estruturação ficcional do roteiro, em que os personagens representam a si mesmos na vida real recriada. Na história, o jovem Ihjãc Krahô não quer se tornar pajé, pois sabe do compromisso coletivo que isso significa e se considera muito novo para renunciar as coisas do mundo e suportar essa tradição. O filme se passa no norte do Tocantis na aldeia Pedra Branca. Outro elemento que é interessante para o filme e que desencadeia a ação dos personagens é a necessidade identificada pelo protagonista de realizar a festa do tora, para seu pai, falecido, assim, encerrando o luto e a saudade e liberando o espirito do pai para poder se juntar à aldeia dos mortos. A história tem uma riqueza grande, revelando diversos elementos da cultura viva dos Krahô. Tive a felicidade de trocar algumas ideias com a produtora Isabela Nader, que contou sobre a produção na aldeia, a equipe desenvolve atividades na area do audiovisual desde 2009, e a pré-produção e filmagem do “Chuva…” durou ao todo 09 meses de trabalho, sendo todo o processo de construção da história e escolha dos personagens um contínuo orgânico. Até mesmo após o lançamento do filme e sua premiação do Um Certo Olhar em Cannes, 2017, os diretores e a produtora continuam desenvolvendo atividades, e em contato frequente com o povo Kraho, no Tocantins.

Já no segundo filme, o ex-pajé Perpera Suruí vive sozinho, próximo aos seus sobrinhos e irmãs, na aldeia dos Paiter Suruí, povo indígena que vive em Rondônia e Mato Grosso. Com frequência, as cenas em que ele está observando e se comunicando com os espíritos da floresta atravessam o filme, que narra a história deste homem que passa a trabalhar como zelador da igreja evangélica que se instalou na comunidade, para poder ser aceito. Ocupação, aliás ilegal, que tem contado com a conivência dos órgãos públicos. O que fica evidente é o impacto colonizador da mesma que trata de tentar condenar e acabar com as crenças e formas de ritual local. Na história, devido ao incidente da irmã de Perpera, que é picada por uma jararaca na roça, ele retoma momentaneamente sua função de cura e comunicação com os espíritos da floresta, lembrando de cantos, histórias e estratégias para curar e enfrentar o espirito dos inimigos que queriam levar embora sua irmã. Dentro destes cuidados, está a dieta dos próprios familiares dela, e a necessidade de não consumir alimentos que não o cará e no máximo carne de macaco. Em determinado momento do filme o Perpera passa a repassar seus ensinamentos ao sobrinho mais novo. O ex- pajé, expressa um canto de tristeza e nostalgia, reflete sobre a perda da identidade originária com os mais jovens da aldeia. O passado e o presente se contrastam por imagens no filme Ex-Pagé, mostrando o contato dos Pater Suruí com os brancos, em 1969. Imagens filmadas e fotografadas.

Nos dois filmes, a presença curativa do pajé se expressa de maneiras diferentes. No primeiro filme, a intervenção do pajé se dá mais no campo psicológico, já que afronta o jovem, que não quer ser seu substituto e que se percebe doente e enfraquecido. Em decorrência da não aceitação do que seria seu destino, o jovem escapa para a cidade, onde se confronta com uma realidade onde não há lugar para ele.

No segundo filme, se trata de espiritualmente acelerar a recuperação de uma mulher indígena. No caso do ex-pajé, sua comunidade que vai aos cultos evangélicos, em um momento critico, perante o estado grave de saúde da irmã, frente a uma medicina convencional de posto de saúde que não consegue lhe dar garantia de sobrevivência, se veem impelidos à apelar às tradições e chamam o ex-pajé na busca da cura. O que pode ser interpretado quase como uma redenção para o ex-pajé, pois ele é levado ao hospital e ela se recupera.

Essas produções mostram a densidade das histórias indígenas, a potência de um imaginário que o cinema brasileiro ainda está reconhecendo. Histórias que tem demonstrado a força de revelar impasses humanos, vivenciados em padrões culturais aos quais a sociedade brasileira ainda é pouco afeita. Os filmes põe em um plano de humildade a cultura não-indígena, ao nos depararmos com uma vasta sabedoria ancestral cujas convenções sociais da sociedade branca dominante não consegue dar respostas e retornos pertinentes às demandas espirituais e existenciais destas comunidades, que são capazes de se auto regular, tomando por base sua ancestralidade, um patrimônio imaterial em permanente resgate.

Ambos os filmes adotam a perspectiva de técnicas observacionais, em planos abertos e tempos dilatados, onde procura-se explorar a plasticidade do ambiente, que incluem a floresta e as ações cotidianas nas terras indígenas e explorando a percepção do espectador da ação que se passa dentro do quadro, renunciando da variação entre enquadramentos, que é a alternância de planos próximos, fechados médios ou de detalhes para dinamizar a narrativas. As sonoridades, maioria cantos diegéticos, criam atmosferas contemplativas e reflexivas ou mesmo meditativas, onde o espectador pode acompanhar os personagens nesta viagem.

Assisti esses filmes em uma plataforma on-line, já que atualmente não estão em cartaz (aliás, filmes de arte, ainda mais deste gênero, custumam ter muito pouco espaço nas salas de cinema, infelizmente). Porém, fica a dica para quem quiser assistir documentários importantes como estes, um deles premiado na mostra um certo olhar de cannes. São filmes imperdíveis!

O mais legal disso tudo é que quem estiver em Porto Alegre e quiser conferir o Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, pode ir no Cine Farol Santander, que está sendo exibido sessões do dia 16/01 ao dia 22/01 deste filme imperdível!


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